Dez
anos são na vida de qualquer homem um longo
tempo. Sendo o tempo o bem mais precioso, porque
irrecuperável, entre todos os bens dos
quais dispomos, inquieta-nos, aos recordarmos
o passado, a idéia de tempo eventualmente
perdido. Considera-se perdido o tempo em que não
vivemos como homens, tempo em que não obtivemos
experiências, não aprendemos, não
realizamos, nem desfrutamos nem sofremos nada.
Tempo perdido é tempo vazio que não
foi preenchido. Bem, tal não se pode dizer
dos anos passados, de maneira alguma. Perdemos
muito, algo mesmo de valor incomparável,
mas o tempo não foi perdido. É verdade
que conhecimentos e experiências adquiridas,
dos quais só se ganha consciência
posteriormente, são abstrações
do verdadeiro, da existência vivida mesmo.
Mas, assim como o poder esquecer equivale a uma
graça, também a memória,
a repetição de ensinamentos recebidos,
faz parte da vida responsável. Nas páginas
que se seguem eu gostaria de tentar prestar contas
de alguma coisa que se me impôs como experiência
e revelação comum. Não se
trata de conhecimentos pessoais, não de
algo sistematicamente ordenado, não de
discussões e teorias, mas sim, de certo
modo, de resultados no terreno do humano obtidos
no círculo dos correligionários.
Resultados postos lado a lado, pertencentes um
ao outro graças à experiência
concreta, não que constituíssem
novidade, mas já em tempos passados conhecidos
e agora por nós reavivados e reconhecidos.
Não se pode escrever sobre estas coisas
sem que uma sensação de gratidão
por todos estes anos de convívio e comunhão
espiritual conservados se comprovados nos invada
e em cada uma das palavras nos acompanhe.
Sem Chão Debaixo dos Pés
Será possível que já houve
na História homens que no presente tiveram
tão pouco chão debaixo dos pés
– aos quais todas as alternativas do presente
existentes ao alcance do possível pareciam
igualmente insuportáveis, hostis à
vida, sem sentido algum – homens que procuraram
a fonte de suas energias tão além
das presentes alternativas, somente no passado
e no futuro, homens que contudo, sem serem utopistas,
podiam esperar com tanta segurança e calma
o êxito de sua causa – como nós?
Ou antes: Será que os responsáveis
de uma geração diante de uma transformação
histórica decisiva sentiam diferentemente
do que nós hoje – justamente porque
se estava criando algo bem novo que não
se enquadrava dentro das alternativas do presente?
Quem Persevera?
A grande mascarada do maligno pôs todos
os conceitos éticos em confusão
estonteante. Para as pessoas que vem do nosso
mundo com conceitos éticos tradicionais
é realmente desconcertante que o mal possa
tomar a forma da luz, da ação beneficente,
da necessidade histórica, da justiça
social; para o cristão que vive da Bíblia,
todavia, isto é a confirmação
da ilimitada malvadez do maligno.
Evidentemente é o falhar dos “sensatos”,
que na melhor intenção e no ingênuo
desconhecimento da realidade pensam poder endireitar
o vigamento que cedeu com um pouco de juízo.
Na sua fraca capacidade de visão querem
fazer justiça a todos os lados e serão
destarte esmagados pelo tremendo choque de forças
opostas, sem que pudessem conseguir o mínimo.
Decepcionados com a insensatez do mundo eles se
vêem condenados à frustração
e por fim se retiram resignados ou ainda caem
indefesos nas garras do mais forte. Mais comovente
ainda é o fracasso do fanatismo ético.
O fanático pretende enfrentar o poderio
do mal com a pureza de um princípio. Assim
como um touro se lança contra a capa vermelha
em vez de atingir o toureiro, ele também
cansa e é vencido. Ele se perde no secundário
e termina apanhado pela cilada do mais sabido.
Desamparado se debate o homem de consciência
diante do dilema da prepotência da situação
que lhe exige decisão. A extensão
dos conflitos, que o obrigam a escolher sem que
ache conselho nem amparo a não ser na própria
consciência, o esmaga. Os inúmeros
honrados e tentadores disfarces, sob os quais
o mal dele se aproxima, trazem à sua consciência
medo e insegurança, até que a ele
baste afinal, em vez de conservar uma consciência
boa, tê-la salva, isto é, até
que minta à sua própria consciência
a fim de não despertar; pois, jamais pode
o homem, cujo único amparo constitui a
consciência, entender que uma consciência
má possa ser mais salutar e mais forte
do que uma consciência enganada. Desta desconcertante
quantidade de possíveis decisões
só o caminho seguro do dever parece poder
guiar-nos a salvo. Aqui se entende o mandado como
o mais seguro e a responsabilidade pela ordem
cabe ao mandante e não ao que executa.
Na limitação do que é do
nosso dever jamais chegamos ao risco da ação
resultante da responsabilidade pessoal, a única
que pode atingir o mal no centro e vence-lo. O
homem do dever, afinal de contas, terá
de cumprir sua obrigação até
com o diabo.
Aquele, todavia, que se dispõe a se realizar
no mundo em verdadeira liberdade, que prega sobre
tudo a ação necessária, mesmo
que pese sobre a consciência e prejudique
seu nome; aquele que está pronto a sacrificar
um princípio estéril ao compromisso
fecundo, ou uma sabedoria estéril da mediocridade
a um radicalismo que produz fruto, que tenha cuidado
para que não o derrube a sua liberdade.
Ele é capaz de ceder ao ruim para impedir
o pior e assim perderá a capacidade de
reconhecer que exatamente o pior, que ele pretende
evitar, poderia ser o melhor. Aqui está
a origem de tragédias. Na fuga da discussão
pública este ou aquele alcança o
asilo de uma virtualidade particular. Mas então
terá de fechar olhos e boca à injustiça
ao seu redor. Apenas à custa de uma ilusão
pode ele conservar-se puro da maculação
por um agir responsável. Em tudo que ele
faz, não o deixará em paz aquilo
que ele deixa de fazer, aquilo que ele omite.
Nesta inquietude ele se arruína, a não
ser que se torne o mais hipócrita de todos
os fariseus.
Quem há de perseverar? Somente aquele para
quem sua própria razão, seu princípio,
sua consciência, sua liberdade, sua virtude
não significam a medida última,
estando ele pronto a sacrificar tudo isso, quando
na fé, apenas preso a Deus, se sabe chamado
para a ação obediente e responsável;
o responsável, cuja vida nada mais significa
do que a resposta à pergunta e ao chamado
de Deus. Onde estão os responsáveis?
Civilcourage?
Como se justifica afinal a queixa com respeito
à falta de civilcourage? Assistimos nesses
anos a muita bravura e abnegação,
mas quase em lugar algum achamos civilcourage,
nem em nós mesmos. Seria uma psicologia
demasiadamente ingênua querermos atribuir
tal carência apenas à covardia pessoal.
No fundo há razões bem diferentes.
Nós, alemães, tivemos de aprender
em uma história muito longa a necessidade
e o poder da obediência. Vimos o sentido
da grandeza da nossa vida na subordinação
de todos os desejos e pensamentos pessoais, sob
os encargos que nos couberam. Nossos olhares eram
dirigidos para cima, não em temores de
escravos, mas na livre confiança de que
no encargo compreendem uma profissão e
na profissão uma vocação.
Afinal, preferir seguir a ordem de “cima”
a obedecer ao próprio critério,
é resultado da voluntariedade que nasce
da desconfiança justificável para
com o próprio coração. Quem
há que possa negar ao alemão que
na obediência, em missão, na profissão
sempre realizou o extremo de bravura e risco de
vida? Sua liberdade, entretanto, o alemão
conservou nisso – e onde se tem falado mais
apaixonadamente de liberdade no mundo do que na
Alemanha desde Lutero até a filosofia do
idealismo? – que tentou libertar-se da teimosia
a serviço do todo. Profissão e liberdade
valeram-lhe por dois lados da mesma causa. Mas
com isso desconheceu o mundo; ele não calculou
que sua disposição à subordinação,
ao risco da própria vida na missão
assumida pudesse ser motivo de abuso para o mal.
Caso tal acontecesse, até o cumprimento
da profissão tornar-se-ia duvidoso e todos
os princípios morais fundamentais haveriam
de começar a vacilar. Descobriu-se, então,
que aos alemães ainda faltava um decisivo
reconhecimento de base: o da necessidade da ação
livre e responsável, mesmo contra a profissão
e contra a missão. Em seu lugar surgiu
de um lado a inescrupulosidade irresponsável
e, do outro, o torturante escrúpulo que
impedia toda a ação. Civilcourage
só pode resultar do livre senso de responsabilidade
do homem livre. Somente hoje os alemães
começam a descobrir o que quer dizer livre
responsabilidade. Ela se baseia sobre um Deus
que exige o livre risco da fé numa ação
responsável e que, aquele que nisso se
torna pecador, garante perdão e conforto.
Do Êxito
Certamente não é verdade que o êxito
justifica a ação má e os
meios condenáveis, mas tampouco é
possível considerarmos o êxito algo
eticamente neutro. Não se pode haver dúvida
quanto ao fato de que o êxito histórico
produz o chão sobre o qual se continua
a viver e é muito duvidoso se é
eticamente mais responsável querer alguém
lutar qual D. Quixote contra uma época
nova ou dispor-se a servir esta nova época
na confissão da própria derrota
e com total voluntariedade. O êxito, afinal,
faz a História, e por cima das cabeças
dos homens que fazem a História o Dirigente
da História transforma sempre o mal em
bem. Não passa de um curto-circuito de
certos fanáticos de princípios sem
senso histórico algum e, por isso irresponsáveis
em suas idéias, querer ignorar totalmente
a importância ética do êxito.
É oportuno que uma vez sejamos obrigados
a discutir seriamente o problema ético
do êxito. Enquanto o êxito coincidir
com o bem, podemos ter o luxo de considerar o
êxito como eticamente irrelevante. No momento,
entretanto, em que maus meios levarem ao êxito,
surgirá o problema. Diante de tal situação
reconhecemos que nem a crítica teórica
do mero observador nem a simples mania de querer
ter razão, isto é, a recusa de se
adaptar à realidade, nem o oportunismo,
isto é, a renúncia de si mesmo e
a capitulação perante o êxito
farão justiça à tarefa. Nós
não queremos e tampouco devemos ser nem
críticos que se julgam ofendidos nem oportunistas.
Teremos de nos considerar co-responsáveis
na formação histórica, de
caso em caso e em cada momento, tanto como vencedores
quanto como derrotados. Quem por nada que acontecer,
permitir que lhe seja tirada a co-responsabilidade
no decurso da História, porque sabe que
esta lhe é outorgada por Deus, este achará
além de toda a crítica estéril
assim como de todo o improdutivo oportunismo,
uma relação fecunda para os eventos
históricos. A fala de um declínio
heróico diante da derrota inevitável
não apresenta em princípio nada
de heróico, porque não arrisca um
olhar para o futuro. A questão última
não é como eu de modo heróico
posso escapar da situação, mas como
a geração vindoura deve continuar
a existir. Soluções produtivas,
mesmo que temporariamente humilhantes, só
podem resultar desta interrogação
historicamente responsável. Em poucas palavras,
é muito mais fácil manter-se fiel
a uma causa por princípio do que por responsabilidade
correta. A geração jovem terá
o mais seguro instinto para distinguir se a ação
está obedecendo a um mero princípio
ou a uma responsabilidade viva: pois nisso está
em jogo seu próprio futuro.
Da Parvoíce
Parvoíce e um inimigo mais perigoso do
bem do que a maldade. Contra o mal não
se pode simplesmente protestar, ele tem de ser
derrotado. Pode-se, em caso de necessidade, impedir
o mal com o uso da violência e o mal sempre
traz em si o gérmen da autodestruição,
causando ao menos um mal-estar no homem. Contra
a parvoíce somos indefesos. Nem com protestos
nem com violência alcançamos algum
resultado! Não há argumentos: fatos
que contradizem o próprio preconceito nem
sequer merecem fé – em tais casos
o ignorante torna-se inclusive crítico
– e caso sejam fatos inevitáveis,
serão postos de lado como casos isolados.
Ademais, o ignorante, muito distinto do malvado,
está completamente satisfeito consigo mesmo;
sim, ele se torna até perigoso, pois facilmente
se sente provocado e passa à agressão.
Por esta razão recomenda-se mais cautela
perante o ignorante do que enfrentando o mau.
Jamais tentaremos persuadir o ignorante com argumentos;
é inútil e perigoso.
Para sabermos como enfrentar a parvoíce,
teremos de procurar entender sua natureza. Tanto
é certo, que a parvoíce não
é essencialmente um defeito intelectual,
mas antes um defeito humano. Há pessoas
intelectualmente muito vivazes que são
parvas e outras intelectualmente muito paradas,
as quais porém são tudo menos tolas.
Tal descoberta fazemos para nossa surpresa em
vista de certas situações. Então
fica-se menos com a impressão de que a
parvoíce é um defeito nato, do que
sob certas circunstâncias os homens são
feitos ignorantes, i.é., se deixam fazer
parvos e ignorantes. Observamos ainda que pessoas
retraídas e de vida solitária apresentam
tal defeito com menos freqüência do
que aquelas que tem inclinações
sociais ou são obrigadas a conviver com
outros homens ou grupos de homens. Assim sendo,
a parvoíce parece constituir mais um problema
social do que psicológico. Ela é
uma forma peculiar de influência de circunstâncias
históricas sobre o homem, um sintoma psicológico
de determinadas situações externas.
Por um exame mais exato demonstra-se que qualquer
ostentação de poder mais forte e
exterior resulta numa boa parte de pessoas na
parvoíce, quer se trate de poder político
quer religioso. Pois, aparentemente, temos alguma
espécie de lei psicossociológica.
O poder de um precisa da tolice do outro. O processo
não é de maneira alguma este que
determinadas inclinações –
como por exemplo intelectuais – de repente
enfraquecem ou desaparecem no homem, mas que sob
a imponente impressão do desenvolvimento
de poder ao homem se rouba sua intima independência
e então ele desiste – mais ou menos
inconscientemente – de reagir às
situações criadas por seu próprio
comportamento. Não nos deixemos iludir
com o fato de que o tolo muitas vezes se mostra
teimoso, como se fosse independente. Nota-se particularmente
na conversa com ele, que não é com
ele pessoalmente que se fala, mas com slogans
e senhas que vieram a domina-lo. Ele se acha sob
um fascínio, ele está obcecado,
abusado em seu próprio ser, realmente maltratado.
Tendo-se tornado instrumento involuntário,
o tolo é capaz de toda a maldade e ao mesmo
tempo é incapaz de reconhece-la como mal.
Nisso está todo o perigo do abuso diabólico.
Desta forma homens podem ser destruídos
para sempre.
É aqui que se torna bem claro que para
vencer a tolice não basta um ato de instrução,
mas é preciso um ato de libertação.
Teremos de compreender, então, que para
realizar uma libertação interior,
na maioria dos casos, será indispensável
ter havido primeiramente uma libertação
exterior: antes disso teremos de desistir de todas
as tentativas de persuadir o tolo. Em tal situação
verifica-se que em vão nos esforçamos
sob essas condições a indagar o
que “o povo” pensa, e porque esta
pergunta para a pessoa que pensa e age com responsabilidade
é totalmente dispensável –
sempre apenas sob as circunstâncias dadas.
A palavra da Bíblia de que o temor de Deus
é o princípio da sabedoria (Salmo
111:10), afirma que a libertação
interior do homem para uma vida responsável
diante de Deus é o único meio para
superar a tolice.
Ademais há um consolo nessas reflexões
sobre a parvoíce, porque de maneira alguma
permitem que julguemos a maioria dos homens como
tolos sob todas as circunstâncias. Será
realmente importante se os poderosos esperam mais
da tolice ou da interior independência e
inteligência dos homens.
DESPREZO DOS HOMENS
Muito grande é o perigo de nós nos
deixarmos impelir ao desprezo dos homens. Certamente
sabemos que não temos direito a isso, e
que tal atitude há de criar relações
muito estéreis com nosso semelhante. Os
pensamentos que nos podem prevenir contra esta
tentação seriam os seguintes: com
o desprezo dos homens entregamo-nos exatamente
ao erro capital de nossos adversários.
Aquele que despreza outro jamais poderá
torna-lo útil e diferente. Aliás,
nada daquilo que no outro desprezamos, nos é
totalmente estranho. Quantas vezes acontece que
do outro esperamos muito mais do que nós
mesmos estamos dispostos a executar. Por que será
que até aqui temos pensado com tão
pouca objetividade sobre a sua sujeição
à tentação e à fraqueza?
Temos de aprender a olhar os homens, menos de
acordo com o que fazem e deixam de fazer, do que
em atenção ao que sofrem. A única
relação fecunda com os homens –
e particularmente com os fracos – é
a do amor, isto é, a vontade de viver com
eles e comunidade. Deus mesmo não desprezou
o homem, ao contrário, por causa do homem,
Deus se tornou homem.
JUSTIÇA IMANENTE
Conta entre as experiências mais estupendas
e ao mesmo tempo irrefutáveis que o mal
comprova sua tolice e inutilidade, e isto freqüentemente,
em prazo surpreendentemente curto. Com isto não
se afirma que a toda ação má
se segue de imediato o castigo, mas certo é
que em princípio a transgressão
dos Mandamentos de Deus no suposto interesse da
sobrevivência terrena, resulta exatamente
em conseqüências que prejudicam este
interesse. Esta nossa experiência pode ser
interpretada de maneira diversa. Em todo caso
parece ser certo que o convívio dos homens
resultam leis que são mais fortes do que
tudo que pretende sobrepujar-se a elas. Por esta
razão não seria apenas injusto,
mas também imprudente, desprezar estas
leis. Daí se nos torna compreensível
porque a ética aristotélico-tomista
elevou a prudência à categoria de
virtude cardeal. Não procede o que um certo
modo de pensar neoprotestante na ética
quis insinuar: que prudência e tolice, do
ponto de vista ético, sejam indiferentes.
O prudente reconhece na plenitude do concreto
e das possibilidades nele contidas ao mesmo tempo
os limites intransponíveis, resultantes
para toda a ação das leis permanentes
ao convívio humano. É neste reconhecimento
que o prudente faz o bem, o homem bom age prudentemente.
Acontece que não há uma ação
de importância histórica que não
transgrida os limites desta lei. Decisiva é
porém a diferença entre duas atitudes.
Uma que encara tal transgressão das leis
estabelecidas, de princípio, como uma anulação,
como se fosse um direito de tipo peculiar, a outra
que bem conserva a consciência desta transgressão
como culpa inevitável e justifica-se apenas
com o propósito do imediato restabelecimento
e respeito da lei e dos limites. Não seria
necessariamente hipocrisia se fosse apresentado
como objetivo da ação política
o restabelecimento do direito, e não simplesmente
a sua sobrevivência. No mundo o arranjo
é que o respeito fundamental das leis últimas
e dos direitos da vida ao mesmo tempo é
mais útil à sobrevivência
e que estas leis só admitem uma transgressão
curta, única e em caso isolado, enquanto
elas eliminam mais cedo ou mais tarde e com violência
irresistível aquele que pretende transformar
a necessidade em princípio e destarte estabelecer
uma lei própria. A justiça imanente
da história somente recompensa e pune a
ação, enquanto a justiça
eterna de Deus prova e julga os corações.
ALGUMAS PROPOSIÇÕES A RESPEITO DA
ATUAÇÃO DE DEUS NA HISTÓRIA
Creio que Deus de tudo, mesmo do mal em sua expressão
máxima, pode e quer fazer surgir o que
é bom. Creio que Deus em toda a situação
de necessidade nos quer dar santa resistência,
quanta nos é precisa. Mas Ele não
no-la fornece antecipadamente, a fim de evitar
que confiemos em nós mesmos, devemos confiar
unicamente nele. Em tamanha fé deveria
ser superado todo o medo diante do futuro. Creio
que nem mesmo nossas faltas e erros são
em vão e que para Deus não será
mais difícil arranjar-se com eles do que
arranjar-se com nossas supostas obras boas. Creio
que Deus não é um mero fato independente
de todos os tempos, mas que ele espera por oração
sinceras e ações responsáveis
e as responde.
CONFIANÇA
Dificilmente é poupada a alguma pessoa
a experiência da traição.
A figura do Judas, que antigamente nos poderia
parecer incompreensível, não mais
nos é estranha. O ar de tal maneira se
acha envenenado pela desconfiança que quase
perecemos sob sua pressão. Onde, entretanto,
conseguimos romper a camada da desconfiança,
pudemos colher a experiência de uma nunca
antes imaginada confiança. Aprendemos lá
onde confiamos, a entregar nossa cabeça
nas mãos do outro; contra todas as múltiplas
interpretações, as quais nossa vida
e nossa ação teve de se sujeitar,
aprendemos a confiar ilimitadamente. Sabemos agora
que unicamente com tal confiança, que sem
dúvida alguma não deixa de ser um
risco, mas um risco alegremente aceito, se vive
e trabalha verdadeiramente. Sabemos que semear
ou estimular desconfiança é das
atitudes mais responsáveis e que, ao contrário,
deveríamos, quanto possível, fortalecer
e promover confiança entre os homens. A
confiança continuará a ser uma das
maiores e mais raras dádivas a trazer felicidade
ao convívio humano, e certamente só
poderá surgir sobre o fundo escuro de uma
suspeita necessária. Aprendemos a não
nos entregarmos, por nada, ao ordinário,
mas a os submetermos incondicionalmente àquele
que merece fé.
SENSO DE QUALIDADE
Caso não recuperemos a coragem de restabelecer
o senso pelas humanas distâncias e lutar
por elas, pereceremos na anarquia dos valores
humanos. A insolência que se evidencia no
menosprezo de todas as distâncias humanas,
ao mesmo tempo constitui característica
da plebe, assim como a insegurança íntima,
o regatear e cortejar o favor do insolente, o
rebaixar-se aos modos da plebe é caminho
à decadência própria. No momento
em que já não se sabe mais o que
se deve aos outros, quando se apaga o senso de
qualidade e a capacidade de manter distância,
o caos estará à porta. Lá
onde toleramos por mero comodismo material que
a insolência se aproxime, já nos
teremos rendido a nós mesmos, e a correnteza
da enchente terá rompido o dique onde seria
o nosso lugar, de modo que teremos culpa pelo
todo ameaçado. Em outros tempos talvez
tenha sido a missão da cristandade dar
testemunho da igualdade dos homens; hoje, todavia,
exatamente o cristianismo terá de defender
o respeito às distâncias humanas
e a qualidade do homem, e isto apaixonadamente.
A interpretação errônea, como
se o cristianismo desta forma tratasse de causa
própria, a suspeita de opinião associal,
teremos que agüentar. Tais são as
censuras permanentes da plebe contra toda a ordem.
Quem nesta hora ficar brando e inseguro não
entende o que está em jogo, e provavelmente
as censuras o atingem com justiça. Achamo-nos
em meio do processo de degeneração
em todas as classes sociais e ao mesmo tempo parece
surgir a hora de nascer um novo comportamento
nobre que tende a unir um círculo de homens
de todas as camadas sociais tradicionais. Nobreza
subsiste e resulta de sacrifício, coragem
e de um conhecimento claro daquilo que se deve
a si mesmo e ao outro, por uma exigência
natural de respeito, como convém, bem como
por uma manutenção do respeito para
cima tanto quanto para baixo. A questão
é, em toda linha, coseguir-se a recuperação
das experiências de qualidade, tão
abaladas; sim, importa restaurar a ordem sobre
a base da qualidade. Qualidade é o arquiinimigo
de todo o tipo de degeneração das
classes sociais.
Socialmente isto significa a renúncia à
caça de posições, o rompimento
com o culto de estrelas de cinema e teatro, esporte
e jornalismo, o olhar livre para o alto e para
baixo, especialmente no que diz respeito à
escolha das amizades mais chegadas, à alegria,
à vida íntima e à coragem
para a vida pública. Culturalmente equivale
à experiência de qualidade ao retorno
de jornal e rádio para o livro, da vida
em constante precipitação ao ócio
e à quietude, da distração
à concentração, da sensação
à reflexão, do ideal de virtuose
à arte do esnobismo à modéstia,
da intemperança à sobriedade. Quantidades
disputam espaço uma com a outra, qualidades,
entretanto, se completam.
COMPARECER
Deve contar-se com que a maioria dos homens somente
fiquem mais prudentes com as experiências
que sentem na própria carne. Assim se explica
primeiramente a surpreendente incapacidade da
maioria para uma ação preventiva
de qualquer tipo – pois, geralmente acredita-se
na possibilidade de poder escapar ao perigo até
que seja tarde demais; em segundo lugar, assusta
a insensibilidade diante do padecimento alheio.
Só em proporção com o crescente
medo da proximidade ameaçadora da desgraça
cria-se a compaixão. Há muito a
eleger para a justificação desta
atitude, do ponto de vista ético: não
se querer por a mão em assuntos que cabe
ao destino resolver; autêntica vocação
e força para a ação apenas
pode resultar da situação séria
que surge na vida de cada um; afinal, não
somos responsáveis por toda a injustiça
e todo o sofrimento no mundo e menos ainda somos
juízes do mundo. Do ponto de vista psicológico:
a total carência de fantasia, de sensibilidade,
do estado interior de constante alerta é
compensada por uma sólida indiferença,
resistência imperturbável de trabalho
e grande capacidade para o sofrimento. Se olharmos
tudo isso com o olhar cristão, entretanto,
não nos podemos iludir a respeito da fragilidade
de todas essas justificativas, pois nos parece
que o que realmente falta é a amplitude
do coração bem formado. Cristo manteve-se
distante do sofrimento até que chegasse
sua hora. Então, Ele o enfrentou com liberdade,
atacou-o e venceu-o sem hesitação.
Conforme diz a Escritura, Cristo suportou todos
os sofrimentos de todos os homens na sua carne
como sofrimento próprio – eis um
idéia incrivelmente sublime – e Cristo
suportou-os na liberdade plena. Não podemos
certamente comparar-nos com Cristo, nem somos
vocacionados para salvar o mundo por nossa própria
ação ou sofrimento. Não devemos
querer nos sobrecarregar com o impossível
e com ele nos torturar, já que não
o poderemos suportar, pois, não somos senhores,
mas apenas instrumentos ou ferramentas na mão
do Senhor da História. De fato, só
conseguimos sofrer os padecimentos de nosso semelhante
em medidas bem limitadas. Não somos Cristo,
mas se quisermos ser cristãos, tal importaria
que participássemos da amplitude do coração
de Cristo em ação responsável,
que em liberdade apanha a hora exata e enfrenta
o perigo e se dispõe a um comparecer autêntico,
que não é ditado pelo medo, mas
brota do amor libertador e redentor de Cristo
para com todos os que sofrem. Mera expectativa
passiva e assistência indiferente não
são atitudes cristãs. O cristão
não pode esperar até que seja alertado
pelas experiências na própria carne,
mas desperta com as experiências do sofrimento
dos irmãos, pelos quais Cristo padeceu,
e isto o impele à ação e
à compaixão.
DO PADECER
É muitíssimo mais fácil sofrer
na obediência a alguma ordem humana do que
sofrer na liberdade de uma ação
responsável. É muitíssimo
mais fácil sofrer em comunidade do que
na solidão. É muitíssimo
mais fácil sofrer em público e sob
honras do que às escondidas e em desonra.
É muitíssimo mais fácil sofrer
pelo sacrifício da vida material do que
pelo espírito. Cristo sofreu na solidão,
isolado e em vergonha na carne como no espírito,
e desde então muitos cristãos sofrem
com Ele o mesmo.
PRESENTE E FUTURO
Até aqui nos parecia constituir um dos
direitos inalienáveis da vida humana poder
traçar os planos para a existência,
tanto na vida profissional como pessoal. Isto
acabou. Sob o imperativo das circunstâncias
chegamos a uma situação em que devemos
desistir de “nos inquietar pelo dia de amanhã”
(S. Mateus 6:34), havendo uma grande diferença
se isto acontece em virtude da livre resposta
da fé, como a caracteriza o Sermão
da Montanha, ou sob pressão do respectivo
momento. Para a maioria dos homens significa a
renúncia forçada de todo o planejamento,
a submissão resignada, irresponsável
e leviana ao momento, enquanto uns poucos ainda
continuam sonhando com um futuro mais bonito,
tentando assim superar a tristeza do presente.
Ambas as reações para nós
são impossíveis. Só nos resta
o caminho estreito que às vezes mal se
descobre, e teremos de toma-lo diariamente como
se fosse o último. Mesmo assim devemos
viver na fé e responsabilidade de tal modo
como se nos esperasse ainda um glorioso futuro.
“Ainda se comprarão casas, campos
e vinhas nesta terra” (Jeremias 32:15),
assim deve o profeta Jeremias proclamar, em vivo
contraste com seus presságios ameaçadores,
na véspera da destruição
da Cidade Santa, o que constituíra diante
da situação desesperadora um sinal
divino e garantia de um grande porvir. Pensar
e agir com vistas à nova geração,
e nesta atitude estar pronto para prosseguir sem
medo nem preocupação, todos os dias,
eis o comportamento que se nos impõe. Certamente
não será fácil suportar tudo
isso com coragem, mas é necessário.
OTIMISMO
É mais prudente mostrar-se pessimista:
assim as desilusões são esquecidas
e não temos de nos envergonhar diante dos
homens. Por esta razão o otimismo é
visto com desaprovação pelos prudentes.
Otimismo, entretanto, não é essencialmente
uma opinião sobre a presente situação,
mas representa uma força vital, uma energia
da esperança, onde outros resignam, uma
resistência de manter erguida a cabeça,
quando tudo parece querer fracassar, uma força
que jamais entrega o futuro ao adversário,
mas o reclama para si. Sem dúvida alguma
existe um otimismo covarde, estúpido, tolo
que não pode colher aprovação
de ninguém. O otimismo entretanto, que
equivale a uma vontade para o futuro, ninguém
deverá menosprezar, mesmo que erre centenas
de vezes. Eis que é a saúde da vida,
que o doente não deve contaminar. Homens
há que julgam ser condenável, cristãos
inclusive existem que consideram ser ímpio
esperarmos um futuro terreno melhor e prepararmo-nos
para tanto. Acreditam eles no caos, na desordem,
na catástrofe como no sentido dos acontecimentos
presentes e assim se recolhem para a resignação
e pia fuga ao mundo, escapando destarte à
responsabilidade para com a continuação
da vida, a reconstrução e as gerações
a vir. Pode ser que o Dia do Juízo seja
amanhã, pois bem, então será
de bom grado que desistimos do trabalho em favor
de um futuro melhor, mas antes não.
PERIGO E MORTE
Pensar na morte tornou-se nos últimos anos
bem mais familiar. Ficamos mesmo admirados com
o sangue frio com o qual recebemos notícias
da morte de companheiros de infância. Nem
mais conseguimos odiar a morte, pois nela já
descobrimos alguns traços de bondade e
quase nos reconciliamos com ela. Dentro de nós
sentimos que já lhe pertencemos e que cada
novo dia não passa de um milagre. Não
seria direito dizermos que gostamos de morrer
– mesmo que a ninguém seja desconhecido
aquele cansaço, contra o qual devemos nos
defender com todas as forças –para
tanto somos curiosos demais ou se o dissermos
com mais seriedade: gostaríamos ainda de
saber alguma coisa no sentido de nossa vida tão
confusa. Nem tampouco desejamos dar à morte
um ar de heroísmo, pois a vida nos é
preciosa demais e cara mesmo. Tanto mais nos recusamos
a ver o sentido da vida no perigo, pois ainda
não nos achamos suficientemente desesperados
e conhecemos muito bem as coisas boas da vida.
Ao mesmo tempo sabemos do medo pela vida e os
efeitos destruidores de uma constante ameaça
à vida. Nós ainda amamos a vida,
mas creio que a morte não mais nos possa
surpreender. Nem mais temos coragem de admitir
o íntimo desejo de que a morte não
nos apanhe por acaso, repentinamente, longe do
essencial, mas na plenitude da vida e na inteireza
de nosso sacrifício, porque as experiências
da guerra nos desanimam. Não as circunstâncias
externas, mas nós mesmos transformaremos
a morte naquilo que ela deve ser, morte por voluntária
aquiescência.
SOMOS AINDA APROVEITÁVEIS?
Temos sido testemunhas mudas de atos criminosos,
fomos lavados com muitas águas, aprendemos
as artes do disfarce e da oração
ambígua, por experiência ficamos
desconfiados contra os homens e muitas vezes lhes
ficamos devendo a verdade e a palavra franca,
cansamos sob os conflitos insuportáveis
e quiçá nos tornamos cínicos
até – somos ainda aproveitáveis?
Verdade é que não necessitaremos
de gênios, nem de cínicos, nem de
desprezadores dos homens, nem de sabidos táticos,
mas sim de simples, modestos e retos homens. Será
que nossa íntima resistência contra
tudo que nos foi imposto se mostrará forte
e nossa sinceridade contra nós mesmos impiedosa
o bastante para que achemos novamente o caminho
para a simplicidade e retidão?